Um homem para o seu tempo
"A vida é realmente uma luta. A vida para qualquer um de nós não tem apenas vargem, não. Tem curvas, morro, atoleiro, tem de tudo. Mas vamos lutando"
ADEUS A BRASÍLIA
Oito mil pessoas compareceram ao velório no Palácio do Planalto.
Antes de Alencar, só Tancredo Neves foi velado ali
“A vida é realmente uma luta. A vida para qualquer um de nós não tem apenas
vargem, não. Tem curvas, morro, atoleiro, tem de tudo. Mas vamos lutando”
José Alencar
vargem, não. Tem curvas, morro, atoleiro, tem de tudo. Mas vamos lutando”
José Alencar
É difícil precisar em que momento, depois de se tornarem heróis, grandes homens viram mito. A construção de um herói é uma trajetória fartamente descrita. Há meio século um dos maiores estudiosos de mitologia e religiões do mundo, o americano Joseph Campbell, mostrou que para tornar-se um herói o personagem precisa ser dotado de uma misteriosa “centelha divina”. É o que, desde cedo, o distingue dos comuns mortais. Então, em determinado momento da vida, os heróis enfrentam uma “tragédia” que mudará seus destinos. Esses acontecimentos escancaram para os heróis o “dever”, a força mais poderosa que os move, o compromisso que assumirão com o resto do mundo. Por fim, todo o herói tem uma “missão”, a forma pela qual ele cumpre seu dever. A mistura de centelha divina, tragédia, dever e missão, no entanto, é insuficiente para que um herói se transforme em mito. Ele só mudará de patamar quando sua existência servir para contar uma história sagrada. Na fronteira entre o celestial e o profano, mitos são representações de uma ideia a ser compreendida. Mitos são símbolos de grandes valores. O Brasil acaba de ver surgir um deles.
COMOÇÃO
Homenagens da população começaram ainda no Hospital Sírio-Libanês,
em São Paulo; abaixo, aplausos durante cortejo em Belo Horizonte
José Alencar Gomes da Silva, que morreu às 14h41 da terça-feira, 29 de março de 2011, aos 79 anos, foi a soma de muitos heróis. O menino pobre do povoado de Itamuri que construiu um império industrial de porte global. O homem de pouco estudo, autodidata, que se transformou em liderança empresarial do País. O sujeito rico que decidiu arriscar o futuro trocando o sucesso na iniciativa privada pela aposta incerta na vida pública. O patrão que se submeteu ao comando de um ex-metalúrgico para viabilizar uma nova proposta de governo para o Brasil. O vice-presidente que conseguiu a proeza inédita de ter seu nome reconhecido pelos brasileiros mais humildes e transformou o cargo numa referência de estabilidade. O político respeitado por um povo curtido na desconfiança. Acima de tudo, porém, José Alencar será sempre lembrado como um homem que ensinou a viver. Um guerreiro em combate público pela vida. Ele é um mito de dimensão humana. “Alencar fez com que as pessoas lutassem junto com ele contra um adversário que todo mundo odeia, que todo mundo quer derrotar, que é o câncer”, diz o oncologista Paulo Hoff, a quem o ex-vice-presidente chamava de “meu médico principal”.
FAMÍLIA
A esposa, Mariza, e o filho Josué durante o velório em Brasília
Mitos, conforme definem os filósofos, representam “pistas do que se poderia ser”. Nesse sentido, Alencar, pela altivez com que encarou o adeus, é exemplar. Sua força como padrão de comportamento pode ser confirmada a poucos metros do boxe 27 da UTI cardiológica, no segundo andar do prédio do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, onde ele passou suas últimas horas de vida. Ali está internado um homem de 70 anos, Ammeleto Socci, funcionário de uma multinacional, que também luta contra o câncer. “Alencar, sempre com um sorriso no rosto, sempre se recusando a entregar os pontos, levanta a autoestima do meu marido nos piores momentos”, diz Regina, esposa de Socci há 43 anos. O médico Hoff afirma que a cirurgia de quase 20 horas a que Alencar se submeteu em janeiro de 2009 foi um marco. “A partir daquela data eu notei que os pacientes comentavam que, se um senhor de quase 80 anos podia enfrentar aquela doença agressiva, eles também poderiam.” Outro médico da equipe, Raul Cutait, lembra de pacientes que cruzavam com Alencar pelos corredores do hospital e faziam questão de contar-lhe o quanto haviam se fortalecido com seu exemplo.
CHEGADA
Cadetes das Forças Armadas carregam o caixão pela rampa do Planalto
Alencar sabia que os brasileiros observavam sua dedicação à vida. Duas semanas atrás, quando foi informado de que as opções terapêuticas não teriam mais efeito contra o câncer, alertou seus médicos: “Isto é problema só nosso, as pessoas têm que saber que eu luto até o fim.” Para os familiares, pediu que lhe providenciassem uma garrafa da “Maria da Cruz”, cachaça de sua fabricação, para dividir com amigos que o visitassem, como contou o jornalista Ricardo Kotscho, ex-secretário de Imprensa do governo Lula. Na segunda-feira 28, às 13h20, Alencar deixou sua casa para ser internado no Sírio-Libanês com fortes dores abdominais, decorrentes de uma obstrução intestinal causada pelo tumor. A equipe médica avaliou que não havia mais nada a fazer senão sedar o paciente. Antes de receber o medicamento, Alencar ainda comentou com bom humor: “O doutor Raul Cutait não vai dizer nada? Então é porque estou mal mesmo...” A mulher, Mariza, os filhos Josué, Maria da Graça e Patrícia e o neto Ricardo fizeram vigília durante todo o tempo em que Alencar ficou no hospital. Ao lado da cama, um vidro de água benta e uma imagem de Nossa Senhora, devoção de dona Mariza. “Ele está se preparando para descansar”, comunicou Cutait no final da manhã da terça-feira. Às 14h41, foi anunciada oficialmente a morte de Alencar. O País inteiro começava, então, a lhe prestar homenagens.
“Esse negócio de empresário de sucesso não me dá muita autoridade.
Tenho 175 milhões de patrões. Devo satisfação a eles”
José Alencar
Tenho 175 milhões de patrões. Devo satisfação a eles”
José Alencar
No clima quente e abafado de Brasília, o céu estava encoberto às 10h de quarta-feira quando o corpo do ex-vice-presidente chegou à capital num avião camuflado da Força Aérea Brasileira. O esquife foi transportado em caminhão aberto do Corpo de Bombeiros pelo trajeto de dez quilômetros até o Planalto. Pela segunda vez na história, realizou-se um velório no palácio presidencial. O primeiro foi o do presidente Tancredo Neves, em 1º de maio de 1985. Mais de oito mil pessoas compareceram à solenidade durante a quarta-feira. O ex-presidente Lula e a presidente Dilma Rousseff , vindos de uma viagem a Portugal, chegaram ao Palácio do Planalto às 21h25. Lula desabou em prantos ao ver o corpo do amigo. Deu um beijo na testa e depois afagou as mãos de seu vice-presidente. Dilma, serena, repetiu o gesto e tratou de confortar a esposa de Alencar. Cinco minutos depois da chegada, o secretário-geral da CNBB, dom Dimas Lara Barbosa, iniciou o rito de recomendação de alma de Alencar. “Ele era impressionante”, lembrou dom Dimas. “Sempre dizia: ‘Não tenho medo da morte, a minha vida está nas mãos de Deus.’”
DESPEDIDA
Lula e Dilma se emocionam em Portugal ao saber da morte do ex-vice-presidente
Na manhã da quinta-feira 31, o corpo de Alencar foi levado para Belo Horizonte.
O carro aberto, do acervo histórico do Corpo de Bombeiros, que transportou o esquife até o Palácio da Liberdade, antiga sede do governo mineiro, era o mesmo que levou o corpo do ex-presidente Tancredo Neves. Na praça da Liberdade, os moradores de um prédio modernista projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, com curvas sinuosas que remetem às montanhas de Minas Gerais, dependuraram no alto do 24º andar a mesma faixa negra que usaram como símbolo do luto por Tancredo. No salão principal do Palácio, uma das primeiras pessoas a se despedir do ex-vice-presidente foi o cozinheiro Alexandro Aparecido Carlos, 26 anos, que aguardava na fila desde as 6h30. “Estou aqui a pedido de minha mãe que também sofre de câncer e luta se inspirando no José Alencar”, contou ele. Pouco antes das 14h, o corpo de José Alencar foi levado para o Cemitério Renascer, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. Três mil pessoas já haviam passado diante do caixão no palácio e outras três mil continuavam na praça para um último adeus.
O carro aberto, do acervo histórico do Corpo de Bombeiros, que transportou o esquife até o Palácio da Liberdade, antiga sede do governo mineiro, era o mesmo que levou o corpo do ex-presidente Tancredo Neves. Na praça da Liberdade, os moradores de um prédio modernista projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer, com curvas sinuosas que remetem às montanhas de Minas Gerais, dependuraram no alto do 24º andar a mesma faixa negra que usaram como símbolo do luto por Tancredo. No salão principal do Palácio, uma das primeiras pessoas a se despedir do ex-vice-presidente foi o cozinheiro Alexandro Aparecido Carlos, 26 anos, que aguardava na fila desde as 6h30. “Estou aqui a pedido de minha mãe que também sofre de câncer e luta se inspirando no José Alencar”, contou ele. Pouco antes das 14h, o corpo de José Alencar foi levado para o Cemitério Renascer, em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte. Três mil pessoas já haviam passado diante do caixão no palácio e outras três mil continuavam na praça para um último adeus.
O PARCEIRO
Chegando de viagem a Portugal, Lula se despede de Alencar
O fato de José Alencar ter se tornado um mito nacional é um ponto a favor dos brasileiros. Sigmund Freud dizia que “os mitos são uma expressão simbólica dos sentimentos e atitudes inconscientes de um povo”. Para o pai da psicanálise, eles representam para uma sociedade o que os sonhos representam para o indivíduo. Sendo assim, a imagem de Alencar – honesta, generosa, capaz e guerreira – depõe a favor da gente desta nação que a escolheu como símbolo. É lícito que, a partir de agora, os brasileiros se mirem naquele sorriso largo e franco de Alencar como se estivessem olhando um espelho.
EM CASA
A última homenagem a José Alencar acontece no Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte
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