Cerco aos fantasmas do Araguaia
Ao denunciar à Justiça o ex-militar Sebastião Curió, considerado o principal algoz da guerrilha, o Ministério Público abre caminho para outras ações criminais contra agentes da ditadura e acirra a oposição dos quartéis
Claudio Dantas SequeiraCRIME CONTINUADO
Para o MP, a denúncia se justifica enquanto corpos
de desaparecidos do Araguaia não são localizados
No momento em que a caserna ainda se debate por conta da criação da Comissão da Verdade, outra iniciativa de peso mostra que a caça aos fantasmas da ditadura começou. Na quarta-feira 14, o Ministério Público Federal do Pará ajuizou a primeira ação criminal da história contra um agente da ditadura, o coronel da reserva Sebastião Rodrigues de Moura, o Curió. Na denúncia apresentada pelos procuradores Tiago Rabelo, André Raupp e Ivan Claudio Marx, o ex-militar, considerado o principal algoz da Guerrilha do Araguaia, é acusado pelos crimes de sequestro e ocultação de cadáver de cinco integrantes do PCdoB que lutaram na região de Xambioá: Maria Célia Corrêa (a Rosinha), Hélio Luiz Navarro Magalhães (Edinho), Daniel Ribeiro Callado (Doca), Antônio de Pádua Costa (o Piauí) e Telma Regina Corrêa (Lia). Baseada em documentos oficiais e depoimentos de moradores e ex-militares, a investigação que começou em 2009 aponta Curió como responsável direto ou indireto pela prisão e morte dos guerrilheiros, cujos corpos foram enterrados em local até hoje desconhecido. O desaparecimento forçado alimenta a tese de crime continuado, previsto no Código Penal. “O fato concreto e suficiente é que, após a privação da liberdade das vítimas, ainda não se sabe o paradeiro de tais pessoas e tampouco foram encontrados seus restos mortais”, argumenta Rabelo.
Na tentativa de driblar a Lei da Anistia, os procuradores afirmam que o próprio Supremo Tribunal Federal utilizou-se de argumentos semelhantes em recentes extradições de ex-militares estrangeiros, o coronel uruguaio Manoel Cordeiro e o major argentino Norberto Raul Tozzo, ambos acusados de sequestros. “Embora o STF tenha decidido pela validade da Lei da Anistia, ela não se aplica nesses casos, pois sua aplicabilidade tem uma limitação temporal, que é de 1961 a 1979. Se o crime é continuado, ele existe até hoje”, explica o procurador Ivan Claudio Marx, que atua em Uruguaiana. Ele organiza o chamado grupo Justiça de Transição, que foi criado no ano passado dentro da Câmara Criminal do MPF, coordenada pela subprocuradora-geral Raquel Dodge. Integram a iniciativa membros do Ministério Público de São Paulo, Santa Catarina e Sergipe. Há diversas investigações em curso que podem resultar em futuras denúncias contra ex-militares. Marx, por exemplo, investiga crimes relacionados à Operação Condor, uma espécie de consórcio entre os regimes militares da América do Sul para perseguir e eliminar opositores.
Na tentativa de driblar a Lei da Anistia, os procuradores afirmam que o próprio Supremo Tribunal Federal utilizou-se de argumentos semelhantes em recentes extradições de ex-militares estrangeiros, o coronel uruguaio Manoel Cordeiro e o major argentino Norberto Raul Tozzo, ambos acusados de sequestros. “Embora o STF tenha decidido pela validade da Lei da Anistia, ela não se aplica nesses casos, pois sua aplicabilidade tem uma limitação temporal, que é de 1961 a 1979. Se o crime é continuado, ele existe até hoje”, explica o procurador Ivan Claudio Marx, que atua em Uruguaiana. Ele organiza o chamado grupo Justiça de Transição, que foi criado no ano passado dentro da Câmara Criminal do MPF, coordenada pela subprocuradora-geral Raquel Dodge. Integram a iniciativa membros do Ministério Público de São Paulo, Santa Catarina e Sergipe. Há diversas investigações em curso que podem resultar em futuras denúncias contra ex-militares. Marx, por exemplo, investiga crimes relacionados à Operação Condor, uma espécie de consórcio entre os regimes militares da América do Sul para perseguir e eliminar opositores.
O PRIMEIRO ALVO
O coronel da reserva Sebastião Curiófoi acusado
pelos crimes de sequestro e ocultacão de cadáver
No Brasil, não há consenso sobre o total de desaparecidos durante a ditadura militar. Os números variam de 140 a 500. Sabe-se que, no caso da Guerrilha do Araguaia, são ao menos 70. “Até agora surgiram condições probatórias nesses cinco casos, mas podem surgir novas evidências de outras vítimas, arrolando mais responsáveis”, diz Marx. Ele estima uma condenação de dois a cinco anos de prisão para cada vítima. “Ainda não sabemos se as penas poderão ser somadas”, afirma. Embora não admitam oficialmente, os procuradores estão convencidos de que processos como esses podem forçar os militares a revelar a localização dos restos mortais dos desaparecidos. Seria o caminho mais fácil para escaparem à condenação, uma vez que a localização dos corpos suspenderia automaticamente a acusação de sequestro continuado.
Procurado por ISTOÉ, Curió se negou a dar declarações. Ele foi orientado pelo Exército a manter silêncio absoluto sobre o caso. Parentes e amigos confirmaram que o ex-militar ficou irritadíssimo com a ação do MPF, que, segundo ele, alimenta um clima de revanchismo. Uma saia justa, sem dúvida, para o ministro da Defesa, Celso Amorim, que vem atuando como algodão entre cristais nas negociações entre membros do governo e os comandos militares sobre a Comissão da Verdade. “Politicamente eu entendo que o MP é autônomo. Não tem nada a ver com revanchismo”, afirmou. Para o procurador-geral da República, Roberto Gurgel, o caso deverá ser avaliado pelo Supremo, por se tratar de uma questão jurídica nova.
OS AUTORES
Os procuradores Ivan Marx (à esq.) e
Tiago Rabelo ajuizaram a ação contra Curió
A discussão sobre a ação do Ministério Público, classificada pela OAB do Rio de Janeiro como “irrepreensível e patriótica”, dificilmente ficará restrita ao âmbito jurídico. Os clubes militares estão em polvorosa e, apesar do voto de silêncio a pedido dos comandantes das Forças Armadas, as discussões em foros da internet revelam tensão crescente. Para evitar o confronto, a presidenta Dilma Rousseff pediu a seus ministros a adoção de um discurso neutro. A ministra-chefe da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário, por exemplo, comemorou timidamente a iniciativa do MPF. “Acredito que o Ministério Público está fazendo seu papel”, disse laconicamente. “Não tenho dúvida de que na democracia brasileira questões em relação à ditadura são absorvidas dentro da institucionalidade”, emendou o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo.