"O Rio inteiro vai ser sacudido"
Presidente da Empresa Olímpica Municipal afirma que o legado da Olimpíada já está na cidade, mas alerta que alguns dos benefícios só serão percebidos muito depois de 2016
João Marcello Erthal e Giancarlo Lepiani
Maria Silvia é presidente da Empresa Olímpica Municipal (Marcelo Piu / Agência O Globo)
O bordão “imagina na Copa” costuma alertar para nossos pontos fracos. Mas em Londres, por exemplo, os problemas com ingressos mostram que ninguém é infalível. Quando li sobre os mísseis nos telhados em Londres, pensei na repercussão por aqui: ‘Imagina no Rio?’
Diante de um imenso mapa da Cidade do Rio, com círculos que demarcam intervenções para os Jogos Olímpicos de 2016, a presidente da Empresa Olímpica Municipal responde mensagens pelo celular, cobra detalhes de um assessor e orienta equipes reunidas que discutem projetos em outro andar do prédio. O ritmo de trabalho não é novo para Maria Silvia Bastos Marques, a executiva que já comandou a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e a Icatu Hartford e foi secretária de Fazenda do Rio, para listar apenas algumas de suas empreitadas até aqui. A diferença, agora, não está só no tamanho do projeto – o maior evento do mundo, como destaca -, mas no grau de complexidade de algo que envolve três esferas de governo, licitações, parcerias com o setor privado e um compromisso acima de tudo: o de garantir o tal “legado” da Olimpíada.
A correria na empresa olímpica, um QG montado no Estácio, a meio caminho entre o centro e a zona sul do Rio, é típica dos momentos que antecedem um grande lançamento. Para os atletas, a primeira Olimpíada brasileira começa em quatro anos, mas para os gestores públicos e o próprio Comitê Olímpico Internacional (COI) o centro do mundo passa a ser o Rio no minuto seguinte ao encerramento dos jogos em Londres. A cobrança, as pressões e as comparações com o evento britânico de 9,3 bilhões de libras (28,5 bilhões de reais) multiplicam-se a partir desta segunda-feira.
Pouco antes de embarcar para os compromissos em Londres, a mulher que comanda a transformação do Rio rumo a 2016 conversou com o site de VEJA sobre o maior projeto já realizado no Brasil.
Muito se fala sobre o legado dos Jogos Olímpicos. Isso vai ser percebido imediatamente?
O legado da Olimpíada já está no Rio. As transformações até agora já justificariam o investimento. O projeto do porto, as mudanças urbanas e o ganho de qualidade para a cidade são indiscutíveis. A reforma que ocorre no centro é ambiciosa. No entanto, também é algo antigo, uma ideia de 20 anos atrás que não virava realidade. Há coisas que não aparecem tanto, como a regularização fundiária. Algumas melhorias têm um tempo maior de maturação. Por onde passa o BRT (sistema de faixas exclusivas de ônibus articulados) há uma reorganização geral da cidade, e há ganho de qualidade de vida e redução de poluição. Mas a requalificação completa dos bairros pode ocorrer num espaço de até duas décadas.
No Rio, as comparações levam a população a aguardar algo parecido com o que foi feito em Barcelona, onde houve uma transformação urbanística e para o esporte. É essa sua expectativa?
Sim e não. Temos pontos em comum com Barcelona, mas lá era mais fácil. Eles não tinham a violência, favelas. A cidade deles é menor, e os jogos também foram. Barcelona tem perto de 2 milhões de habitantes, nós temos 6 milhões. As semelhanças existem, e há objetivos parecidos. Estamos requalificando o porto, como eles. Mas não há comparação exata, porque as cidades têm problemas específicos. O Rio sempre foi complicado do ponto de vista administrativo, por ter sido capital federal, capital do Império. São questões que não existem em São Paulo, Belo Horizonte ou outra grande cidade.
E em relação a Londres?
Em Londres os esportes estão concentrados, o que concentra também o poder de transformação. No Rio há uma área maior envolvida, e o benefício também vai se distribuir mais. A candidatura foi muito concentrada na Barra da Tijuca. Mas o prefeito conseguiu transferir uma parte disso para o Porto. E isso foi importante, porque criou um projeto imobiliário numa região que vinha adormecida. As vilas de mídia e de árbitros depois se tornam um conjunto residencial, vendido preferencialmente para servidores do município. É uma ação de trazer de volta as moradias para o centro do Rio. O impacto positivo é muito grande e já vemos isso: casinhas são reformadas, numa cadeia que vem transformando a cidade.
Como se garante que um projeto tenha um benefício efetivo, além dos objetivos dos jogos?
Estamos criando indicadores no município para acompanhar isso ao longo dos próximos dez anos. As transformações importantes mudam a história de uma cidade, tanto que até hoje falamos de Pereira Passos (prefeito do Rio no início do século XX, que abriu a Avenida Rio Branco e reformou o centro). A Empresa Olímpica Municipal é a ponta visível do município. Por trás, estão todas as secretarias. O Parque Olímpico é um exemplo de como trabalhamos. Ele fará parte de um ‘cluster’ olímpico, do qual também fazem parte o Riocentro, o Parque dos Atletas e a Vila dos Atletas. Desenhamos para isso segurança, transporte, acessibilidade. E quando olhamos para o parque vemos que ele é mais que tudo isso junto. Estamos começando um projeto, por enquanto chamado de ‘Last Mile’ (última milha), para definir o percurso a partir de agora e olhar tudo de forma integrada.
O fato de termos a Copa do Mundo antes dos Jogos Olímpicos é um facilitador, ou isso é impressão?
As Olimpíadas são o maior evento do mundo. A Copa do Mundo é algo “mega” para a televisão. Mas para uma cidade não há comparação. As pessoas só terão essa noção quando isso estiver acontecendo no Rio: são 46 campeonatos ao mesmo tempo. Em Londres, a expectativa era da ordem de 10 milhões de turistas circulando em um intervalo de quatro semanas, e a nossa previsão é de que o Rio tenha um pouco mais. Por outro lado, ter toda essa gente voltando para seus países de origem e divulgando imagens, experiências, histórias da cidade, será maravilhoso.
Há uma grande preocupação com a infraestrutura da cidade.
Os desafios são imensos. Desde já, enquanto cuidamos de obras, planejamos para não ter problemas lá na frente. Por exemplo, sabemos que o Brasil não tem geradores de energia suficientes para a demanda em 2016, e isso tem que ser resolvido. Também não há ambulâncias disponíveis para tudo isso. No Galeão, vão desembarcar 700 cavalos. Não são animais comuns, mas cavalos olímpicos. Isso nunca aconteceu, porque antes isso era feito por Campinas, mas a quarentena necessária e os seguros, caríssimos, nos obrigam a trazer a operação para o Rio.
Recentemente, na Rio+20, tivemos problemas com hospedagem. Isso preocupa?
A rede hoteleira vai dobrar até 2016. Temos 19.000 quartos hoje na cidade. Em construção e licenciados, já são mais 9.000. Além da ampliação, os hotéis existentes estão se aprimorando. Tenho um amigo que sempre fica em um hotel em Ipanema. Na última semana, ele reclamou comigo, porque precisou ficar em Botafogo. O motivo era a reforma do hotel em que ele costumava se hospedar. Isso é ótimo para a cidade. O brasileiro é crítico, e o carioca parece ser ainda mais. Na Rio+20 a cidade se saiu muito bem. O bordão “imagina na Copa” costuma alertar para nossos pontos fracos. Mas em Londres, por exemplo, os problemas com ingressos mostram que ninguém é infalível. Quando li sobre os mísseis nos telhados em Londres, pensei na repercussão por aqui: ‘Imagina no Rio?’
A população comprou a ideia desde o início em Londres?
Na época da candidatura, a cidade não era majoritariamente favorável. O benefício para o morador tradicional realmente não é tão grande. Mas quem sente mais é o morador da área afetada. No Rio temos uma oportunidade imensa de melhorar a vida das pessoas. E o Rio inteiro vai ser sacudido. A máxima a que recorro é: se não incomodou, não está mudando. Todo mundo vai ter que se sentir incomodado em algum momento. No caso do metrô a batalha da comunicação foi mal jogada. Uma parte da população ficou contra um projeto que é importante para ela própria. Na estação General Osório, haverá um transtorno enorme. Todo mundo tem medo da mudança. Cabe a nós explicar bem o benefício que vem depois dela.
As críticas aos Jogos Pan-americanos de 2007 prejudicam a aceitação do projeto?
As pessoas ficaram mais desconfiadas. Não tenho razão nem interesse para defender o Pan, mas vejo que os equipamentos foram importantes para ganharmos a disputa. Penso que dificilmente a candidatura do Rio seria vencedora se não fossem os equipamentos do Pan. O Comitê Olímpico dificilmente bancaria a candidatura de uma cidade sem tradição e que não tivesse nada pronto. E os equipamentos vão ser usados: Engenhão, Maria Lenk, HSBC Arena. Só o velódromo não poderá receber competições. Na época em que foi feito o velódromo, a pista poderia até ser apropriada, mas o desenho do projeto já era inadequado.
Como é feita a passagem de bastão de Londres para o Rio?
Londres colabora muito com o Rio. Eles são muito profissionais, querem transferir tecnologia. Em novembro, teremos um ‘debriefing’, e eles vêm ao Rio para passar a experiência das olimpíadas. Este processo é uma exigência do COI. Eles passam para a Rio2016 a experiência, o que é importantíssimo para nós. Seis meses depois dos jogos, o trabalho da empresa olímpica continua. No Rio, vamos até dezembro de 2016, e teremos esse período para devolver aos governos tudo o que produzimos.
Já houve algo no Brasil que se compare ao tamanho e à complexidade dos Jogos Olímpicos?
Certamente não. Os Jogos Olímpicos são imensos. As coisas se somam. Nosso Parque Olímpico é pequeno em relação ao de Londres, porque vamos usar o Engenhão, o Maracanã. Mas ainda assim é algo imenso, que não pode ser pensado só para o que acontece durante os Jogos. Os acessos têm estações de BRT. Nos momentos de pico, o volume de usuários será enorme, mas isso não pode ser dimensionado pensando só assim. Temos que criar acessos definitivos e temporários, pensando em atender a população também depois do evento, mas considerando a melhor relação de custo para isso. Tudo estará em evidência, e não podemos errar a mão. Para cada projeto, temos que pensar no “modo jogos”, no “modo legado”, no custo temporário e no que vai acontecer depois das competições.
Que aprendizado o Rio consegue extrair de Londres, do ponto de vista de gestão da cidade?
Como esperávamos, os britânicos são brilhantes, e os Jogos são um sucesso de planejamento e execução. Mas é preciso considerar que Londres tem estágio de maturidade completamente diferente. Agora, depois da Olimpíada, entra em ação a Legacy Company, uma agência de desenvolvimento dos britânicos para expandir os benefícios gerados por todo esse investimento. Mas há uma batalha em especial que eles venceram com maestria: a da comunicação. Conseguiram vender muito bem os jogos para a população. O Parque Olímpico teve um projeto de integração com a comunidade. Foram tão competentes que começaram com um orçamento de 3 bilhões de libras, terminaram com 9,3 bilhões (28,5 bilhões de reais) e entram para a história com o discurso de que economizaram 500 mil libras.
E quanto isso vai custar no Rio?
É precipitado falar de um valor total agora. Partimos de um orçamento de 23,8 bilhões de reais na candidatura, com o dólar a 2 reais. Mas isso é um quebra-cabeça. A matriz de responsabilidade não é estanque, é um documento dinâmico, que vem desde o dossiê de candidaturas. E o orçamento evolui com a mudança de projetos, de traçados, de locais para as instalações. Algumas mudanças são sugestões e pedidos do COI. E isso é ótimo para nós, pois há uma transferência de tecnologia de que não dispomos. Temos projetos praticamente prontos e outros que sequer foram licitados. Se multiplicarmos isso com governos municipal, estadual e federal, a conta fica muito complexa. Há também a incorporação de módulos que não estavam no orçamento inicial. O Comitê Olímpico Internacional acompanha todos os movimentos e está atento a isso. Em Londres, foi criada uma verbalização única, um comitê que referendava todos os números, e dali saía uma informação única. Não sei se isso será possível no Brasil. A estrutura federativa de lá é muito diferente da nossa. Quando tivermos todos os projetos em nível de maturidade de projetos básico ou executivo licitados, poderemos ter ideia precisa do total. Atualmente ainda somamos bananas com laranjas.