Olhar a cidade pela janela de minha casa suscita imaginar
as escrituras do espaço urbano, as dimensões físicas e mesmo imagináveis da
cidade, como nos foi apresentado por Ítalo Calvino. Dentro
de sua concretude o urbano desenha campos de memórias submersas, aguardando um
toque de curiosidade, provocar um atrito, uma certa ressonância nas teias da
memória para que o anjo de Paul Klee, se faça História e possa olhar outros campos de lutas e representações da história.
Nessas lutas de representações no campo da escrita
histórica, nos deparamos com silêncios provenientes da maneira como a cidade e
suas vias ganham uma narrativa, procurando dar um sentido a cidade e a sua
História. Ao se tornar palco de uma narrativa simbólica através das ruas e
monumentos a cidade ganha os contornos de uma luta de representações, onde o indizível,
o não dito ecoa num silêncio atordoante, mesmo quando dito.
Itajaí não se exime desse processo de nomeações e
representações do espaço urbano. Suas ruas renomeadas após a implementação da República
no final do século XIX, ruas como Conde D’Eu, (rebatizada como Lauro Müller),
Pedro II, transformada em XV de novembro, rua Vitória (nome dado devido a
Guerra do Paraguai), tornou-se rua Felipe Schimidt.
Uma narrativa republicana, instituiu uma nomeação para a
cidade, produzindo um discurso em concordância com os preceitos políticos e de
poder instituídos a partir daquele momento. Essa narrativa constituiu uma
narrativa do silêncio, falas passaram a serem ditas apenas numa superfície fina
e escorregadia afim de não pronunciar outras falas.
Procurando riscar o verniz dessa fina superfície, eis um
elemento interessante da História de Itajaí, a rua Pedro Ferreira, no período
imperial chegou a se chamar rua do comércio, Itajaí nasce entre as ruas Pedro
Ferreira, Lauro Müller e Hercílio Luz formando um T. A partir dessas ruas, o
comércio ligado a atividade portuária se fez principalmente a partir da segunda
metade do século XIX.
Voltamos
então a rua Pedro Ferreira, qual motivo levou a rua do comércio ser rebatizada
com o nome de Pedro Ferreira? O que ele representou para cidade? a chegada do Dr. Pedro Ferreira e Silva,
nascido em 1861 na Vila de Sant’Anna do Catú, na Bahia, que estudou medicina na faculdade da Bahia, graduando-se
em 1885 e transferindo-se para Itajaí em 1886.
Diploma
de Pedro Ferreira e Silva. Centro de Documentação e Memória Histórica de
Itajaí.
A chegada desse jovem
médico a Itajaí provocou um deslocamento na maneira de olhar a cidade, pois era
proveniente de uma escola de medicina com prestígio reconhecido em todo o país
e com forte influência nas discussões acerca da saúde pública entre a década de
80 e 90 do século XIX. Da faculdade baiana saíram intelectuais como Nina
Rodrigues e Afrânio Peixoto, que vão incorporar as discussões da medicina legal
com uma tônica para a eugenia.
A presença do Dr. Pedro
Ferreira constitui-se em um diálogo com as discussões intelectuais de outras
regiões, que não só do Rio de Janeiro, cidade irradiadora das discussões acerca
da modernidade.
Aqui se percebe desencadear práticas
discursivas imbricadas aos investimentos destinados à constituição de novos
espaços de sociabilidade, a novos códigos de conduta e comportamento no espaço
urbano. Provavelmente Pedro Ferreira e Lauro Müller mantinham contato. Pedro
Ferreira ocupou a Presidência da Câmara de Vereadores enquanto Lauro Müller era
Senador da República; em 1904, Pedro Ferreira é Superintendente Municipal e
Lauro era responsável pela reforma do porto do Rio.
Observamos aqui o estatuto de homem de ciência
implícito em Pedro Ferreira e Silva, tornando-o figura pública na cidade,
constituindo-se em Itajaí um contato importante do PRC (partido republicano
catarinense) com Felipe Schmidt (Primo de Lauro Müller) e Lauro Müller, que nas
primeiras décadas do século XX, teve importante participação política na
implantação da República. Pedro Ferreira e Silva foi sócio
fundador do IHGB/SC em 1896, foi deputado estadual e Superintendente de Itajaí.
A emergência intelectual de Pedro
Ferreira e Silva, tornou invisível o fato de se tratar de um intelectual
formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, responsável juntamente com a
Faculdade de direito do Recife (Pernambuco), pela formação de vários
intelectuais, formadores de uma “intelligentsia” brasileira, espalhando-se por
várias regiões do Brasil. Colocando a região Nordeste como grande centro
produtor intelectual e cultural entre a segunda metade do século XIX e durante
grande parte do século XX.
Outro elemento silenciado, Pedro
Ferreira e Silva era afrodescendente, o que na história local passou a “vistas
grossas”. A foto de Pedro Ferreira mais exposta é de aproximadamente de 1910,
um ano antes de sua partida terrena, fica perceptível o processo de
branqueamento realizado na fotografia, para deixa-lo mais próximo do que se
desejava na época em termos de “estética intelectual” para a elite branca.
Pedro Ferreira e Silva em
1888 e 1910.
Pedro Ferreira, foi mais um dos
intelectuais a ser negligenciado, ou, “branqueado” para responder a uma
narrativa histórica desejada, dar sentido a uma narrativa uniforme, sem
divergências ou diferenças. No entanto, nos descaminhos da História, memórias e
dizeres são pronunciados, cabe ao historiador buscar “o que a memória não
guardou”.