domingo, 17 de abril de 2011

Reflexões

Olhares sobre o Passado: Usos e Percepções.

Por Chico Braun

Quando nos propomos a tratar de cultura, sejam as práticas sociais, (como as sociedades se organizam culturalmente) seus rituais, os símbolos produzidos para dar significado a própria existência, a maneira como vivem, como percebem o outro. Esses aspectos parecem constituir uma relação quase imperceptível com o passado, digo imperceptível, porque certos rituais estabelecidos na sociedade ocidental tem no passado um elemento fundador ou justificador de práticas culturais e sociais, produzindo um discurso que legitima um passado muitas vezes idealizado, servindo como suporte para inventar uma tradição, uma identidade.

Vou tratar de dois pontos já debatidos na historiografia brasileira, o dia de Tiradentes (21 de abril) e a Descoberta do Brasil (22 de abril). A começar pela Descoberta do Brasil, gostaria de apontar a Primeira Missa do Brasil, retratada por Victor Meirelles em 1860 e transformada em filme por Humberto Mauro em 1937, aqui podemos perceber como o passado foi utilizado para forjar um discurso do nascimento da nação brasileira, produzindo uma ideia de cultura e identidade nacional, herdeira da cultura lusitana (portuguesa), esses discursos insuflaram os debates intelectuais no Brasil entre os anos 1870-1930.

O passado colonial no Brasil foi o palco para a produção de uma identidade nacional baseado na ideia das três raças, conceito criado por Von Martius, botânico que em viagem pelo Brasil nos anos que atravessaram a Independência do Brasil. Martius via a natureza como único elemento original que o Brasil tinha para oferecer ao mundo civilizado, a população: nativos (indígenas), afrodescentes  (negros) e descendentes de portugueses (brancos) foram classificados como uma sub-raça em processo de degeneração.

Os ecos desse processo encontra-se no final dos anos 1920, quando Paulo Prado publicou em 1928, o livro Retrato do Brasil, argumentou que a miscigenação ocorrida no período colonial produziu um brasileiro triste, sem possibilidade de civilização, o passado de prado inventou um brasileiro cansado e triste.

A problemática da miscigenação só foi resolvida na década de 1930 com a publicação de Casa Grande & Senzala (1933) de Gilberto Freire que se apropriou do passado colonial, mas, lançando um olhar diferente sobre a miscigenação, fazendo uso da Antropologia culturalista de Franz Boas, Freire positivou a miscigenação com a criação do brasileiro híbrido, fruto do encontro das “três raças” iniciada no período colonial brasileiro.

O hibridismo positivou o brasileiro miscigenado, agora alegre, disposto, hospitaleiro etc., alterando a percepção do passado colonial, agora percebido como o momento fundador de um novo brasileiro: o brasileiro híbrido. Cunhando uma ideia de identidade étnica e cultural onde o brasileiro de Freire se tornou um elemento da identidade nacional e da cultura brasileira, quando na literatura de Jorge Amado encontramos em Gabriela ou Pedro Arcanjo o arquétipo da teoria de Freire, tornando esse um discurso de passado que se tornou naturalizado, massificado pela literatura, cinema e televisão nos últimos setenta e oito anos desde a publicação de casa Grande & Senzala.

Agora lancemos um olhar sobre Tiradentes, não vou aqui fazer juízo de valores se foi ele realmente martirizado ou não, mas, tratar da maneira como a apropriação do passado legitimou práticas e criou signos de identificação. Isso ocorre com o quadro de Pedro Américo sobre o martírio de Tiradentes Esquartejado retratado em 1893, podemos observar nessa tela feita mais de um século após a morte de Tiradentes torna-se o momento em que se produz uma invenção do passado, que se materializa no pincel do artista, dando formas e cores a uma temporalidade. Nesse processo, se funda uma representação onde o passado é legitimado pela imagem que produz um caráter de verdade ao discurso historiográfico, inventando uma narrativa da nação.

Nesse sentido, o passado se torna uma apropriação, um discurso, uma prática social que intenciona lançar os alicerces da cultura e da identidade nacional, apresentado como um passado fixo e sedimentado sem possibilidade de reflexão.

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